Integração e melhor entendimento dos papéis do juízo universal da recuperação e da
Justiça do Trabalho são vitais para a economia do Brasil
Por Lucas José Rossi Cesar e Frank Koji Migiyama
A preservação das empresas, geradoras de riquezas e de empregos, é objetivo de interesse
nacional e social, uma vez que todo tecido econômico é e deve ser formado pela soma dos
esforços empreendedores de uma sociedade.
A Lei 14.112/2020, vigente desde 23 de janeiro de 2021, veio com o objetivo de modernizar os
processos de recuperação judicial, mantendo as previsões quanto a possibilidade de redução
de passivo por meio de deságios coletivamente negociados, alongamento do perfil das
dívidas, comercialização de ativo etc., ao mesmo tempo em que presta-se também a proteger
o patrimônio dos sócios, de forma a permitir que estes ‘‘respirem’’ em busca de uma solução
para a manutenção da atividade empresarial e função social.
O financiamento DIP (“Debt in Possession”), que não é novidade absoluta, foi revisado na Lei
14.112/2020, que proporciona melhor segurança jurídica tanto para o lado tomador quanto
para o prestador. Basicamente, consiste no devedor contratar financiamento bancário
utilizando bens pessoais como garantia, de forma a possibilitar que a empresa em
recuperação judicial passe a ter fluxo de caixa, isso desde que o empréstimo receba
autorização judicial.
Portanto, o sócio da empresa em recuperação judicial pode adquirir empréstimo se utilizando
de bens pessoais como garantia para injetar dinheiro na empresa, concedendo oxigênio e
aumentando as possibilidades de êxito do plano de recuperação judicial e,
consequentemente, da manutenção das atividades empresariais.
No que se refere aos créditos trabalhistas, é importante o destaque que as ações de natureza
trabalhista tramitam perante a Justiça do Trabalho até a efetiva apuração do crédito para
posterior habilitação dele junto ao juízo da recuperação judicial, isso porque entende-se
caber à justiça especializada a definição do quantum do crédito trabalhista e ao juízo da
recuperação judicial a gestão universal dos múltiplos credores, sendo desta última a
responsabilidade de fiscalizar a legalidade do processo de modo a assegurar às diferentes
classes de credores e suas respectivas escalas de privilégio, equidade no recebimento de
seus haveres.
O juízo da recuperação judicial é, assim, universal e indivisível, o que significa dizer que nele
se processam todas as ações de cobrança (no caso de créditos trabalhistas execuções) contra
o devedor. É perante o juízo da recuperação judicial que deverão ser arrecadados todos os
ativos da sociedade empresária e realizado o pagamento a todos os credores, de forma a se
respeitar o princípio da par conditio creditorum, assegurando-se assim, que todos sejam
tratados de maneira igualitária com relação as suas pretensões ao ativo, em proporção ao
valor de seus créditos e de suas classes.
Aqui vale um breve destaque para a forma de pagamento dos créditos trabalhistas na
recuperação judicial, os quais, com o advento da Lei 14.112/2020 tiveram a extensão do prazo
de pagamento que antes era de apenas um ano, para, agora, até três anos, desde que: (i)
apresentadas garantias que o juiz da recuperação judicial entenda suficientes; (ii) ocorra a
aprovação dos credores trabalhistas pela maioria simples dos credores presentes; e (iii)
garantia da integralidade dos créditos trabalhistas, portanto não há aplicação de deságio.
Não podemos perder de vista que os créditos trabalhistas limitados a 150 salários-mínimos
por credor, e os decorrentes de acidente de trabalho tratam-se de créditos de categoria
privilegiada na ordem de classificação dos credores, sendo assim, com preferência sobre os
demais.
Portanto, três situações intimamente relacionadas devem ou deveriam ser estritamente
observadas para o bom desenvolvimento da recuperação judicial e para o respeito à
legislação que a prevê, quais sejam: (i) juízo universal da recuperação judicial; (ii) créditos
trabalhistas têm natureza privilegiada dentro da recuperação judicial; e (iii) abriu-se a
possibilidade do sócio da empresa em recuperação judicial obter empréstimo bancário
fornecendo bem pessoal como garantia.
Muito embora o mandamento legal assim determinar e de ser este o entendimento
predominante na doutrina e jurisprudência das cortes civis, tudo no sentido de ser a
competência da Justiça do Trabalho limitada à fase de conhecimento, cabendo ao juízo da
recuperação judicial as execuções dos créditos trabalhistas, ocorre que muitas vezes na
prática a Justiça do Trabalho acaba por invadir a competência do juízo universal da
recuperação judicial, mantendo a execução por sua conta, o que configura uma arbitrariedade
e uma ilegalidade.
Essas decisões destoam totalmente dos princípios que regem a recuperação judicial,
sobretudo o do tratamento igualitário entre os credores, obviamente respeitando-se as
desigualdades existentes entre eles e a ordem de preferência legalmente estabelecida.
Cria-se então um crédito supra privilegiado, vez que passa a transitar fora da recuperação
judicial, sem qualquer limite imposto pela lei que rege a falência e a recuperação judicial,
inclusive sendo passível de atingir os bens dos sócios, sem a observância dos preceitos
legais e processuais exigidos.
E é neste momento que suscitamos o tema DIP anteriormente apresentado, que pode ser a
única oportunidade de se injetar capital de giro para compra de materiais e pagamento de
obrigações necessárias para minimamente fazer a empresa rodar. As instituições financeiras,
mesmo com a revisão da Lei 11.101/05, sempre procurarão ativos fora do processo de
recuperação judicial para uso como garantia numa transação de capital de giro,
financiamento e renegociações, por exemplo. E a sobreposição da Justiça do Trabalho pode
desalinhar frentes de reestruturação de empresas que estão em recuperação judicial.
A execução individual dos créditos trabalhistas se dá, nessa hipótese, em detrimento dos
demais credores e despreza completamente o princípio da par conditio creditorum e, por
conseguinte, o próprio objetivo da execução concursal.
A partir do momento em que se permite a execução individual por parte dos credores
trabalhistas, estes acabam por arrecadar bens da empresa em recuperação judicial, de seus
sócios e/ou de outras empresas do grupo econômico, impossibilitando que estes bens sejam
utilizados na recuperação judicial ou sejam dados de garantia pelos sócios para obtenção de
fluxo de caixa, havendo o risco, inclusive, de nulidade de eventuais vendas de imóveis por
considerar ter havido fraude contra credores por parte da Justiça do Trabalho.
Não suficiente, na grande maioria das vezes, os credores trabalhistas garantem, ao menos em
parte, o recebimento de seus créditos, enquanto aqueles que se sujeitaram ao procedimento
da recuperação judicial ficam sem qualquer participação no produto da arrecadação dos bens
particulares dos sócios ou de outras empresas de eventual grupo econômico.
Então, a ânsia da Justiça do Trabalho em proteger o trabalhador acaba por causar severas
consequências e danos à recuperação judicial colocando em risco postos de trabalho e até
mesmo o recebimento de créditos trabalhistas de outros empregados, o que, de forma
indireta, nada mais é do que a permissão legal da preponderância do particular sobre o
coletivo, justamente o que a Justiça do Trabalho deveria buscar reprimir.
Na atual conjuntura, vimos setores que fizeram ‘’poucos’’ investimentos para se adaptarem e
estão com bons resultados. Porém, outros setores sofreram mais porque as transformações e
inovações necessárias para a devida continuidade mais próxima do ponto de equilíbrio
somadas às medidas restritivas e outros fatores, não se realizaram simplesmente pela
deficiência ou ausência de capital, tomadas de decisões tardias e outras não tomadas no
passado.
O quanto antes as empresas se prepararem para uma reestruturação do negócio, maior será
o poder de manobra numa gestão de crise para, inclusive, evitar a recuperação judicial.